Estranhar-se

Matheus Ribeiro

Matheus Ribeiro

É curioso o sentimento de autoestranhamento, embora tão comum. Durante a vida, construímos identidades que nos orientam e asseguram em um ambiente por vezes tão caótico e imprevisível. Mais do que imagens, as identidades falam de estilos de habitar o mundo, que ao mesmo tempo nos possibilitam conforto e nos enrijecem. Ou seja, ser de uma determinada forma é ao mesmo tempo liberdade e aprisionamento.

Acontece que boa parte do tempo nós vivemos “cotidianamente” e da maneira que conhecemos, o que significa que tomamos a existência como dada. É como se diante de um outro que nos indagasse sobre nossas escolhas, preferências, lugares que ocupamos, relacionamentos que sustentamos, disséssemos: é assim mesmo. Como sempre foi e como sempre será.

Os filósofos da fenomenologia chamam isso de “atitude natural”, no sentido de uma “inocência” primária daquele que não problematiza a realidade, não se enxerga enquanto ser vivente constituinte e constituído por algo que não é ontologicamente necessário. Poderia ser de outra forma. E se eu tivesse nascido do outro lado do mundo? Se eu performasse outra identidade de gênero, ou pertencesse a outra etnia? Se tivesse nascido em outra época? Meu modo de experienciar o mundo seria radicalmente outro. Mas para fins de economia psicológica, digamos assim, nos acostumamos com a nossa própria realidade como se ela fosse a única.

Pois bem. Assim vivemos até certos momentos de brilhantismo e angústia, nos quais o que era absolutamente dado e necessário se mostra enfim como apenas mais um elemento contingente. Aquela certeza que você tinha, seus modos de agir, os sonhos infantis, visões de si mesmo e assim por diante enfim deixam de fazer sentido, perdem seu vigor interno, e como se fosse pela primeira vez, vemo-nos diante de uma verdade intuitiva: criamos nosso próprio caminho.

A liberdade, claro, não é absoluta. E não digo isso nem porque somos limitados pelo tempo, pela matéria, a humanidade e os recursos naturais, mas sim porque mesmo as escolhas que acreditamos ser mais nossas e mais autênticas estão totalmente contaminadas e impregnadas por uma história de vínculos afetivos, desejos que nunca sequer compreendemos completamente e até uma ancestralidade que não sabemos em que medida se faz presente em cada uma de nossas decisões. Como ser eu é sempre ser outro, entrar em “contato consigo mesmo” significa sempre fazer um movimento rumo aos mistérios mais ricos da nossa espécie.

Nenhum ser humano sabe de fato o que o futuro lhe reserva, mas muitos encontraram garantias e presumem serem mestres do próprio destino. Outros, olham diretamente ao abismo e sentem a vertigem. Quem sabe até fiquem sentados na sua beirada para apreciar a brisa.

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