Ética delirante e a Pandemia

Matheus Ribeiro

Matheus Ribeiro

Há uma dimensão ética na vida humana que consiste no fato de que, por mais que nos fechemos em nossas bolhas e conhecimentos, o mundo nunca para de ser novo. Ou seja, mesmo lá onde nos sentimentos seguros podemos ser atravessados por algo de estranho – a ética é a maneira com que nos relacionamos com ele.

O estranho se manifesta de muitas formas: pode ser uma pessoa, um jeito de viver ou mesmo um vírus. O vírus, particularmente, materializa muito bem a figura do estranho. Afinal de contas, ele é um perigo “exterior”, que tem o poder de nos invadir, adoecer e matar.

É compreensível então que o modo como uma cultura lida com a alteridade – ou seja, com o que é “alter” (o estranho) – esteja diretamente relacionado com o modo com que irá lidar com uma pandemia viral.

Escrevo esse texto hoje após ver um vídeo onde um político brasileiro tenta usar – pasmem – fumaça de solda e faísca para curar um homem adoecido pela COVID-19. O que isso diz sobre nós? Acredito que a busca por curas milagrosas – a cloroquina, depois a ivermectina, isso sem nem mencionar o ozônio… – é um indicativo de certo discurso delirante.

Um delírio é uma forma de lidar com isso de estranho que nos atravessa e descentra. Mais precisamente, o delírio é uma forma organizadora, uma tentativa de retomar uma estabilidade que exclui aquele do qual se defende. O problema é que este organizar é, de alguma forma, “mágico”. Podemos repetir quantas vezes necessárias que o “tratamento precoce” cura a COVID-19, e isso talvez tenha a “vantagem psicológica” de nos trazer segurança, mas uma mentira dita mil vezes ainda é uma mentira.

O que o negacionista nega? O fato de que o vírus é real, perigoso, que matou e ainda mata muita gente. Nao é por acaso que o governo federal brasileiro questiona se os hospitais realmente estão lotados – sua estratégia deliberada é o discurso delirante.

Para escaparmos do delírio, é necessário admitir nosso lugar de vulnerabilidade frente ao estranho: não temos – ainda – remédios específicos para a COVID-19, e NÃO EXISTE TRATAMENTO PRECOCE. Só assim podemos lidar com o problema a partir da realidade apontada por cientistas: de que precisamos de vacinação e distanciamento social.

Até que ponto chegará o delírio brasileiro para não ter que lidar com a realidade de seus mortos?

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